Em dois dias de mandato, Donald Trump deixou claro. Seria rápido e muito mais radical na segunda passagem pela Casa Branca. Aparentemente, sem pensar nas consequências. Qualquer problema, negocia-se depois. Intenções de tomada de territórios de países estrangeiros mostram o tamanho da ousadia. E o recém criado Departamento de Eficiência Governamental (DOGE na sigla em inglês), chefiado por Elon Musk, principal patrocinador da eleição do republicano, começou uma guerra aos servidores públicos e a qualquer iniciativa de apoio a questões de igualdade e inclusão, palavras agora proibidas.
Dois meses depois, a vítima foi a octagenária Voice of America (VOA) emissora de rádio e portal de notícias para propaganda dos Estados Unidos no exterior. Cerca de 1.300 trabalhadores foram demitidos da Voz da América no sábado (15.03.2025). Ainda não se sabe o que será feito de sua estrutura. Mas meia dúzia de funcionários seguem ativos. Isso pode ser encarado como normal para o encaminhamento de questões burocráticas, mas também pode ser um sinal de que a solução será outra. Outro detalhe é que radioescutas reportam a ausência de sinal da emissora, mas uma transmissão online em inglês segue no ar. A programação jornalística foi substituída por música pop, mas está mantida uma síntese de notícias de cinco minutos de duração de hora em hora e gravações de aulas de inglês.
No entanto, o mais intrigante sinal é que, na lei, a missão da agência que controla a VOA, a USAGM (Agência dos EUA para a Mídia Global) é “informar, envolver e conectar pessoas ao redor do mundo em apoio à liberdade e à democracia”. Mas atenção: o presidente ditou uma nova redação para a missão da USAGM: “apresentar de forma clara e eficaz as políticas do governo Trump ao redor do mundo”. Sai a palavra democracia. Entra a menção a Trump. Na lei. É o que está em um memorando interno publicado no início do mês, informou a CNN. Se a intenção fosse fechar, qual o sentido de ordenar um novo texto?
Pode ser entendido que não haverá uma paralisação total das atividades, mas elas serão adaptadas aos novos tempos tecnológicos da comunicação. Uma pista: no site do DOGE, em qualquer local que se clique, o internauta é direcionado à rede X, de Elon Musk.
E, pior, se formos ao pé da letra das palavras ditadas por Trump, pode-se ler que ele pretende se eternizar no poder. Lembrando: ele determinou que a missão da USAGM deve ser “apresentar de forma clara e eficaz as políticas do governo Trump ao redor do mundo”. É exagero imaginar que ele não pretende deixar o Salão Oval tão cedo? Para quem chega falando em anexar o Canadá e tomar a Groenlândia, creio que não.
A VOA transmite desde 1942 em ondas curtas com alcance mundial. Foi criada para se opor à propaganda nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Atualmente, estima-se que alcançava um público de 360 milhões de pessoas em conteúdos em 50 línguas.
Junto com a Voz da América, foram atingidas as rádios Free Europe, fundada em 1949 e destinada ao Leste Europeu, com quase 500 empregados; a Free Asia, voltada principalmente ao público chinês; a Rádio Marti, de propaganda anticubana (essa no bojo da derrocada da USAID); e a Middle East Broadcasting Networks, para o Oriente Médio. Segundo Trump e Musk, as emissoras custavam US$ 1 bilhão por ano e nada faziam além de propaganda radical de esquerda…
O ex-diretor da VOA, Michael Abramowitz, lamentou ver a organização que dirigia ser chamada de esquerdista, “enquanto os adversários da América, como Irã, China e Rússia, estão investindo bilhões de dólares na criação de narrativas falsas para desacreditar os Estados Unidos”, publicou a BBC.
Por enquanto, China e Rússia sorriem satisfeitas. Noticiando o episódio, o jornal chinês Global Times chamou a VOA de “uma fábrica de mentiras”. Para os chineses, a Voz da América foi “jogada fora como um trapo imundo” pelo próprio governo estadunidense. Na Rússia a reação é a mesma. Segundo o jornal inglês Independent, Margarita Simonyan, editora da emissora estatal russa RT, saudou a “incrível decisão do senhor Trump. Hoje é feriado para mim e meus colegas da RT e da Sputnik. Esta é uma decisão incrível do Trump!” Simonyan acusou os veículos de mídia financiados pelos Estados Unidos de espalhar notícias falsas e fazer lavagem cerebral nos russos. “Não conseguimos fechá-los, infelizmente, mas a América fez isso sozinha”, disse ela no talk show semanal da RT.
A EBC num cenário eleitoral pessimista em 2026
A extrema direita brasileira tem em Trump o modelo a ser copiado. Se voltarem ao poder na próxima eleição presidencial, é certo que a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) será uma das vítimas. Desta vez, com muito mais radicalidade. Na criação da EBC, em 2008, foram pensados mecanismos para garantir sua independência. No entanto, foram frágeis e ineficazes. Assim que Michel Temer golpeou Dilma Rousseff, foi também derrubada a presidência da EBC, que tinha um mandato em vigor, e destituído o Conselho Curador, responsável por garantir a participação da sociedade na linha editorial da empresa.
Bolsonaro, quando presidente, tinha na mira a privatização da EBC, que opera a TV Brasil, a Agência Brasil e as emissoras de rádio Nacional e MEC. No entanto, o assunto foi esquecido. Segundo Bolsonaro, a economia para o governo com o fim da EBC seria pequena, pois a maior parte do quadro de funcionários não poderia ser demitida. Daí a usar os meios de comunicação disponíveis na estrutura governamental em proveito próprio foi um passo. Tanto que acabou por tornar Bolsonaro inelegível em decisão do Tribunal Superior Eleitoral por uso indevido dos meios de comunicação.
Se houver uma próxima oportunidade para a extrema direita, uma intervenção sobre a EBC será muito mais radical, mesmo que a direita vença em 2026 com um nome menos troglodita na aparência. A tendência hoje é que seja Tarcísio de Freitas o concorrente. Apesar das furiosas e insólitas marteladas em um leilão na Bolsa de Valores quando ministro de Bolsonaro, para o eleitor que não o conhece, Tarcísio vai tentar passar a imagem de um equilibrado empreendedor civilizado. Para isso, terá o apoio fiel da mídia corporativa e da Faria Lima. Tarcísio vestiu o boné do Make America Great Again. Se vencer, haverá desmantelo ou ocupação sem piedade, à moda Trump.
Lucio Haeser
Reprodução condicionada à citação da fonte radiolab.blog.br/Lucio Haeser
