Das dezenas de emissoras de rádio da British Broadcasting Corporation atualmente disponíveis online, somente duas vão permanecer disponíveis para escuta fora do Reino Unido.
Assim que instalei internet em casa, há quase 30 anos, comecei a escutar rádios online. Era algo que desejava muito e tinha me motivado a comprar um novo computador capaz de me conectar à rede. Uma das primeiras foi a BBC Radio 2, emissora do grupo de comunicação do Reino Unido. E o programa, que ainda escuto quase todos os sábados pela manhã, foi o Pick of the Pops. São duas horas de reprodução de paradas de sucessos musicais de décadas passadas.
Muitos outros programas, melhores e muito mais interessantes, pude acompanhar ao longo dessas décadas, principalmente nas rádios 1 (pop), 3 (clássicos e experimental, o programa Late Junction é incrível), 4 (a melhor de todas, com muita informação e dramaturgia), 6 e na Rádio London, a rádio local da BBC para a capital.
Dezenas de outras opções eram oferecidas e, eventualmente, eu fazia escuta da BBC Scotland (adoro o sotaque escocês), Wales, Cymru, Nan Gàydheal, e também das BBCs locais de Bristol, Leeds e tantas outras. Cada emissora tinha o próprio site, mas em 2018 os serviços foram centralizados no aplicativo BBC Sounds ou no site de mesmo nome.
Pois bem, essa minha alegria e de milhões de pessoas pelo mundo vai acabar em poucos dias. A BBC decidiu, depois de tanto tempo, cortar o acesso a essas rádios a quem vive fora do Reino Unido. Voltamos à era pré-internet. Cidadãos britânicos que vivem no exterior serão a exceção. Devem ser autorizados a usar um VPN ou outra solução tecnológica.
O motivo exposto no site da BBC é seguinte. “BBC Sounds é um serviço financiado por taxa de licença do Reino Unido. Para oferecer melhor valor para nossos ouvintes do Reino Unido, o BBC Sounds será reposicionado e disponibilizado exclusivamente para o público do Reino Unido. A BBC Studios é uma subsidiária comercial da BBC e está focada em levar nosso jornalismo e narrativa confiáveis e de classe mundial para o público internacional. Isso inclui conteúdo de áudio da BBC no bbc.com e no aplicativo da BBC, que será focado para ouvintes internacionais.” Mais ou menos como: o povo aqui é que paga, porque vocês vão ouvir de graça? Brincadeira à parte, mais do que isso, o fato é que em 2018 a BBC perdeu seu caráter de comunicação estritamente pública e passou a visar o lucro. *Mais sobre BBC Studios ao fim do texto.
No Reino Unido, todas as residências com um aparelho de TV devem pagar uma taxa anual de 169,50 libras (pessoas cegas têm desconto de 50%). Convertido ao real em março de 2025, equivale a cerca de R$ 1.250 ao ano. A chamada licença de televisão deve ser paga pela recepção ao vivo, seja pela tradicional transmissão por antena, cabo, satélite ou via internet.
O dinheiro arrecadado representa 75% dos recursos investidos pela BBC em rádio, TV e internet. Em 2023, foi levantado pelo imposto o equivalente a pouco mais de R$ 30 bilhões. A BBC é uma operação gigantesca. Para evitar a evasão, existe fiscalização, inclusive de escuta na proximidade de residências não pagantes, para tentar verificar se, de fato, não há um aparelho de TV ligado. As rádios da BBC são 100% livres de comerciais.
Para o público internacional, nem tudo está perdido. No final da explicação, a BBC informa que no site bbc.com ou no novo aplicativo BBC estão disponíveis conteúdos em áudio. Das dezenas de opções de rádio ao vivo que tínhamos, restam duas. Menos mal, as mais importantes: BBC Radio 4 e BBC World Service. Essa ainda pode ser captada em aparelhos de rádio com ondas curtas. As rádios da BBC transmitem no tradicional FM analógico, DAB (rádio digital), algumas poucas em AM, e online. A Radio 4 é uma das melhores rádios que já ouvi e, de longe, a emissora que mais tempo fico escutando.
Você pode ligar a Radio 4 em um aparelho estéreo com caixas de som devidamente separadas e sentir-se em um palco de um teatro para acompanhar uma dramatização enriquecida por efeitos sonoros perfeitos que lhe deixam no meio da cena. Claro, o aparelho pode ser menor e estar em cima da geladeira enquanto se lava a louça. O prazer não é muito menor.
A Radio 4 é essencialmente falada, havendo apenas um programa regular com música: o Desert Island Discs (Discos para uma Ilha Deserta), onde personalidades das mais diversas áreas apontam suas gravações musicais preferidas. Esporadicamente, há um ou outro programa sobre algum músico ou estilo que roda gravações musicais.
Segundo a BBC, a restrição adotada para o exterior – evitando apenas as degolas da Radio 4 e da World Service – se deve muito ao fato de as outras rádios terem grande peso de programação musical, o que gera uma enorme questão relativa aos direitos autorais. ”Devido a limitações de direitos, nem todo o conteúdo da BBC pode ser disponibilizado para usuários internacionais. Isso inclui estações de rádio de música da BBC, bem como alguns podcasts.” Até podemos entender, mas, depois de 30 anos, ficamos mal acostumados.
Além dessas duas opções de streamings que reproduzem as duas emissoras citadas, o ouvinte além-mar (overseas, como os britânicos se referem ao “resto” do planeta) terá uma enorme oferta de podcasts novos e em arquivo. Bem, tudo certo com ouvir podcasts, mas ainda não desapeguei (talvez isso nunca aconteça) de ouvir rádio tendo a sensação de que muitas outras pessoas estão escutando o mesmo que eu simultaneamente. Aprecio muito essa sensação. Sem falar que, de hora em hora, em todas as rádios da BBC, temos sempre dois a cinco minutos de atualização da síntese das últimas notícias, o que sempre nos coloca em contato com o planeta em andamento. Mas sei que o mundo não é imutável, claro.
Fico triste por não ter mais a opção de curtir o Late Junction, na Radio 3, ou o Pick of the Pops, na Radio 2, entre tantas outras belas produções. Aquela BBC que conheci pelas ondas curtas do Serviço Brasileiro em 1968 e a qual visitei em 1996 não existe mais. Agora eles não podem mais se contentar apenas com os R$ 30 bilhões pagos pelo público, precisam de lucro. A propósito, a taxa anual paga pelo cidadão fazia parte de um contexto bem diferente, onde a BBC não buscava o lucro. Como se justifica isso agora? A ver.
Existem outras ótimas opções de rádio online e é a elas que sempre vou recorrer. Muita coisa mudou e/ou se perdeu na internet desde o seu início. E essa é, para mim, uma mudança que representa o fim de uma era.
*Sobre a BBC Studios, seguem trechos do que consta na Wikipedia:
BBC Studios é uma empresa britânica de televisão e distribuição de televisão. É uma produtora comercial da BBC, sendo uma junção de departamentos de produção internos da antiga divisão da BBC Television, sendo produzido Comédia, Drama, Entretenimento e Música.
O estabelecimento formal da BBC Studios como entidade comercial ocorreu em abril de 2017. Em abril de 2018, a BBC Studios incluiu a divisão de distribuição internacional existente da BBC, BBC Worldwide, para torná-lo um distribuidor e produtor de programas alinhados com outros grandes conglomerados de estúdios multinacionais.
BBC Studios teve empresa registrada em 27 de Fevereiro de 2015. Em setembro de 2015, o diretor geral da BBC, Tony Hall, anunciou uma proposta para dividir as unidades de produção internas da BBC para programação de televisão não noticiosa em uma separada. A divisão da BBC Studios, que eventualmente, com a aprovação do BBC Trust como parte da próxima revisão do estatuto da BBC, seria gerada como uma subsidiária da BBC com fins lucrativos. Esta proposta permitiria que as unidades da BBC produzissem programas para outras emissoras e canais digitais como a distribuição da BBC Worldwide, além das propriedades públicas da BBC.
Lucio Haeser
Reprodução autorizada desde que citada a fonte: radiolab.blog.br/Lucio Haeser
